Há álbuns dos quais necessito ter alguma distância emocional para conseguir escrever sobre eles. Entrudo é um deles. No entanto é também um daqueles álbuns dos quais nunca me vou conseguir separar musical e emocionalmente.
Lançado a 10 de Junho, Entrudo é o quarto álbum dos Xeque-Mate, banda formada em 1979 e conhecidos como os pais do heavy metal português.
Depois do anterior álbum Não Consigo Manter a Fé, lançado em 2022, ficámos com a certeza de que uma nova era dos Xeque -Mate estava a nascer, uma era que se apresentava mais madura. E confirmou-se!
Tal como Entrudo, a época que antecede a quaresma, o Entrudo álbum remete-nos para uma expressão sem filtros ou aparências, uma inversão de papéis sociais, crítica social e espírito de transgressão rebelde, onde tudo é permitido, num espaço onde a máscara serve a verdade para desmascarar a mentira, a farsa, a hipocrisia social, as aparências.
Entrudo oscila entre momentos de profunda introspecção, como se a máscara olhasse para o interior de si própria e sobre si reflectisse, e momentos de euforia, a fazer lembrar os caretos transmontanos com todas as suas cores e chocalhos.
Xico Soares tem neste álbum uma prestação que denota a maturidade de quem aprendeu e nos ensina que há tempo para dizer tudo na urgência do tempo que passa.
Corre-Corre é o tema de abertura de Entrudo, e é um hino-rock que nos leva à reflexão sobre o verdadeiro valor da vida. Há uma especie de ensinamento de quem já viu a vida a passar e tomou consciência de que o corre-corre em que vivemos de nada serve quando é a própria vida que se perde. Corre-Corre é a prova de como o rock pode ser emotivo e emocionar. Tema que conta com a colaboração de Jorge Marques (Tarantula) e Lex Thunder (Toxikull).
"Há no mundo gente em quem não se deve crer mas há sempre quem tente passar um pano e esquecer" ou "é preciso ter tomates para a gaita lhes cortar" são frases que podes ouvir em Pequenez, o segundo tema, que é uma crítica brutal e directa aos maus tratos e abusos sexuais a menores no seio da igreja. Tema forte e com linguagem dura de quem já não se importa com o politicamente correcto e se indigna em bom português.
Talvez no Céu, o terceiro tema, é um tema em que o baixo brilha. E não podia ser de outra forma, com uma mensagem tão profunda. Talvez no céu possa abraçar/amar/ter... talvez no céu nos possamos encontrar, apesar do cepticismo racional há sempre espaço para a crença emocional.
O tema que dá nome ao álbum ocupa a quarta faixa. Entrudo inicia com os chocalhos dos caretos, ou serão os chocalhos dos rebanhos objecto da crítica social e política deste tema? É o entrudo todo o ano!
Em Não Me Lembro, o foco é a saúde mental e a perda de identidade que resulta da perda de memória ou podemos ter uma outra leitura sobre este tema e questionar se os papéis que representamos no nosso dia a dia nos fazem esquecer quem somos?
Não Vai Ser Fácil é o tema mais pessimista de todo o álbum, e que tem por base a crítica política e a urgência de mudança, sem a qual, não vai ser fácil o futuro.
"Quero ver quando for dia de enfrentar o criador, vai ser uma sessão contínua com um filme de terror" - Filme de Terror com um instrumental cadenciado, num estilo marcha fúnebre, é mais uma vez um tema em que a crítica religiosa está presente.
E depois de um filme de terror somos confrontados com o poder emocional em Feitiço, talvez o tema mais divergente do álbum. É o que defino como "uma balada à la Xeque Mate", com poderosas guitarras e um ritmo mais "embalador".
Entrudo termina com Trova da Memória, um instrumental que não precisa de mais nada para nos transmitir a melancolia e a intensidade da nossa memória. Tudo o que somos, tudo o que sonhamos, é construído pela nossa memória ao mesmo tempo que a constrói. Hoje somos uma entidade com passado que se constrói no presente para existir no futuro. E é a melhor forma de terminar Entrudo, um álbum de crítica, de ironia e catarse, mas também de memória e de esperança.
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