Poucas pessoas podem dizer que dedicaram mais de três décadas da sua vida ao underground de forma tão intensa e diversificada como Fellipe CDC, também conhecido como Cara de Cachorro. Fanzineiro, vocalista, produtor cultural, organizador de festivais, editor, radialista e verdadeiro agitador cultural, ele é uma figura incontornável na cena brasileira.
Entre fanzines históricos, bandas de diferentes vertentes e projetos culturais que marcam gerações, Fellipe continua ativo, fiel ao espírito do “faça você mesmo” e sempre movido pela paixão. Nesta entrevista, recorda histórias, explica motivações e partilha conselhos a quem hoje quer mergulhar no universo alternativo.
Fellipe, antes de mais obrigado pela tua disponibilidade e começo por falar no teu nome de guerra, “Cara de Cachorro” tem uma história curiosa ligada ao encarte do “Morbid Visions” dos Sepultura. Podes contar como surgiu e como acabou por se tornar a tua marca no underground?
Olá, Miguel, eu é que agradeço a oportunidade desta entrevista. Olha, o apelido surgiu em 1987, quando num grupo de amigos headbangers, houve um, o Varíola, que disse que eu parecia com o cachorro de peruca que aparece no encarte do Morbid Visions. Bem, eu na altura não levei aquilo a bem e aqui no Brasil quando alguém não gosta de um apelido e reage, ele acaba por “colar”. Com o tempo, habituei-me e passei eu próprio a usar o pseudónimo Cara de Cachorro, abreviado para CDC.
Começaste a tua jornada em 1987 como correspondente da fanzine United Forces e logo depois criaste a tua própria publicação, de nome Metal Blood. O que te motivou a entrar no mundo das zines e como era produzir material impresso na época sem internet?
Pois é. Faz tanto tempo e ainda tenho saudades desse período. Foi uma fase muito ativa da minha vida e que me tornou um adolescente com sede de música e de ajudar a difundir o estilo que continuo a apreciar até hoje. Conheci a United Forces através de um anúncio na revista Rock Brigade. Escrevi ao editor oferecendo-me como correspondente e tudo era feito por cartas manuscritas e selos reaproveitados. Pouco depois conheci o meu amigo António Rolldão (Kill Again Rec.) e, com o Cláudio Carrasco, começámos a Metal Blood, a primeiro zine de heavy metal do Centro-Oeste brasileiro.
Ao longo dos anos editaste inúmeras fanzines, como Protectors of Noise, Brigado do Barulho, Set List, Raio X, Meus Inimigos – Os Políticos ou Brasília – Fina Flor do Rock. Qual deles mais te marcou e porquê?
O Protectors of Noise foi um fanzine que fez um bom barulho e lançou, modéstia à parte, boas edições. Acredito, inclusive, que um dos motivos que levou ao fim do Protectors of Noise foi a popularidade alcançada, pois estávamos a receber muitas cartas e muitos materiais e não tínhamos tempo, nem dinheiro para responder a todas as pessoas. Foram muitas cartas. Todos os dias um monte de cartas. Raio X foi uma fanzine que unia música underground, quadrinhos e política. Foram anos produtivos também. Brasília, Fina Flor do Rock já foi um impresso mais dinâmico e de maior tiragem. Eram de 2 a 8 páginas e saia com uma periodicidade maior e abordava também outros estilos do rock, apesar do foco ser o heavy, o punk e o hardcore. Brasília, Fina Flor do Rock ficou tão conhecido que virou até música de banda de rock indie. Acho que esses 3 momentos tiveram muita relevância para mim.
Além das fanzines, foste vocalista em várias bandas como os Cursed, HCS, Teratogênia, Scumbag e Slam Noise Terror. Como foi equilibrar a vida de músico com a de produtor cultural e editor de zines?
Os Cursed foram a primeira experiência, mas durou pouco, fizemos algumas músicas muito boas, mas, é uma pena que ninguém se consegue lembrar nada. Era uma mistura de death-metal e hardcore. Isso foi em 1988.
A seguir surgiram os HCS (Hardcore Suicida), onde estive até 1990, ano em que formei os Death Slam. Depois surgiram os Teratogênia, que chegaram a fazer alguns bons concertos e a participar numa coletânea em K7. Os Scumbag foram um projeto de grind death com elementos dos Violator e, finalmente, os Slam Noise Terror reuniram músicos de várias bandas, com a particularidade de nenhuma música poder ultrapassar 51 segundos. Hoje continuo a equilibrar a vida entre a produção de eventos, o programa Zine-se e as minhas três bandas ativas.
E como se consegue manter a identidade de cada projeto?
Olha, os Death Slam existem desde 4 de outubro de 1990 e mantêm até hoje a mesma energia de união entre metal, punk e hardcore. Continua com a mesma sede juvenil de nossos primórdios barulhentos.
Os Terror Revolucionário, com mais de vinte anos de estrada, focam-se mais no hardcore punk e nas letras de crítica social e política em português.
Já os Caligo, a mais nova das três, nasceram em fevereiro de 2012 e o primeiro ensaio aconteceu num dia de chuva intensa com raios e trovões que iluminavam o céu escuro, a dar o tom do doom metal cantado em português, com fortes influências de Black Sabbath e flertes com Cathedral e Paradise Lost. Apesar de cada uma ter identidade distinta, a paixão pela música é o ponto em comum. Todas representam resistência e liberdade de criação sem preocupações comerciais.
Como produtor de eventos, criaste festivais como o Headbangers Attack, o Slam Fest, o Terror Fest e o Vomitando a Ceia. O que é mais desafiador: manter festivais vivos ou manter bandas ativas?
São universos distintos que se entrelaçam, porque respiram o mesmo ar e lutam a mesma batalha. Mas os festivais acabam por ser mais desafiadores, porque ao produzir um evento lidas com um núcleo maior e mais diversificado de pessoas e interesses, e lidar com seres humanos nunca é uma tarefa fácil.
O teu selo Independência Records já lançou coletâneas e discos de várias bandas. Como vês o papel de um selo independente hoje, numa era em que o streaming domina e o formato físico perdeu espaço?
Se já é difícil para bandas grandes, imagina para as do underground. Por isso, o trabalho das zines e selos independentes continua a ser fundamental. Recentemente, lancei o livro “86 Histórias Sobre Discos Brasileiros” e já preparo o segundo volume. O selo também continua ativo em parcerias, como no próximo disco da banda punk baiana Pastel de Miolos.
E qual o conceito desse livro?
São histórias de paixões! A nossa cena underground é movida por paixão! Se não fosse isso, o nosso rock pesado, a nossa música subterrânea já teria morrido e não atravessaria tantas gerações. Cada um dos 43 autores escreveu sobre dois discos de bandas brasileiras de metal ou punk que foram e são importantes nas suas vidas. O livro transborda sentimentos e boa música!
Fazes parte do grupo de apoio do Ferrock Festival há mais de treze anos. O que significa trabalhar num evento deste porte?
É algo grandioso. Tivemos nos palcos nomes como Napalm Death, Suffocation, Tim Ripper, Uriah Heep, além de grandes bandas brasileiras como Sepultura, Ratos de Porão e Dorsal Atlântica. Tudo isso num festival gratuito ou em troca de alimentos, que depois eram doados a instituições. O Ferrock é o festival de rock mais antigo do Brasil ainda em atividade e é um orgulho fazer parte dele.
Hoje apresentas também o programa Zine-se em várias webradios. A rádio ainda é vital para a música extrema?
A rádio é vital para todo e qualquer tipo de música. Infelizmente, as rádios convencionais sempre privilegiaram a música de quem mais paga. E no Brasil, muitas emissoras foram compradas pelo agronegócio, que as encheu com a chamada nova música sertaneja, de qualidade duvidosa. Felizmente, surgiram as webradios, onde as bandas independentes têm espaço. É aí que o programa Zine-se encontrou casa. Começámos há nove anos na Rádio 4 Tempos e depois fomos convidados por outras rádios: Cult 22, Overrocks, a portuguesa Alta Voltagem e a carioca Rock n Roll Old School. Hoje, a entrevista também vai ao ar pelo canal do Estúdio Mercearia no YouTube. O Zine-se é semanal, produzido e apresentado por mim e pelo Fábio Frajola, com ajuda de amigos voluntários como a Sillene e o Marcel.
Com mais de três décadas no underground, que conselho deixarias a quem hoje quer criar um zine, uma banda ou organizar um festival?
Seja qual for o campo de atuação que escolherem, façam-no por amor. Dificilmente qualquer trabalho no underground dará dinheiro ou será fonte de rendimento principal. É importante deixar isto claro para que ninguém monte uma banda a pensar em fama ou sucesso. A frustração pode levar alguém a abandonar a cena, a criticar injustamente o nosso meio e desencorajar outros jovens de compor, tocar, organizar eventos ou editar os seus próprios fanzines.
Se tivesses de escolher um momento que resuma a essência da tua vida no underground, qual seria?
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